Foi na véspera da Copa do Mundo de 1958,
quando o Brasil foi campeão mundial de futebol pela primeira vez, que Nelson
Rodrigues cunhou numa crônica publicada na revista Manchete esportiva (em 31 de
maio de 1958) a expressão "complexo de vira-latas", para se referir
aos que desvalorizam o Brasil e os brasileiros. Prosa Poesia e Arte reproduz
aqui a crônica, por sua atualidade, e um vídeo que debate o
"complexo".
Complexo de vira-latas
Por Nelson Rodrigues
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os
jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a
esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem
esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto:
— Não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e
envergonhado?
Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de
acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda
faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional
que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos
digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um
escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre
a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros,
Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer:
“extraiu” de nós o título como se fosse um dente.
E hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a
frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas
o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão.
E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — se o
Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a
fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam
acabar no hospício.
Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades
concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade:
— eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo
inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto joga dores de
outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do
aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse
aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um
Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro,
quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de
único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma:
— temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes,
invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “com
plexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser
isso?” Eu explico.
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o
brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos
os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é
uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro
inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi
tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada
vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a
vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um
motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se
vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de
técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.
O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem
futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso,
ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o
chinês da anedota.
Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.
Extraida do livro: NelsonRodrigues, À sombra das chuteiras
imortais: crônicas de chutava. Organizado por Ruy Castro. São Paulo,
Cia das Letras, 1993.